terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

A hora mais escura


A hora mais escura (2012) é um exemplo de que nem sempre conhecer o desfecho de uma história representa saber a emoção de sua trajetória. 

O filme, da premiada diretora Katryn Bigelow, conta a longa jornada do serviço de inteligência e segurança norte americano em busca do temido líder da Al-Qaeda, Osama Bin Laden. Centrada na figura da agente Maya, interpretada com brilhantismo por Jessica Chastain, a caçada tem início no pós 11 de setembro de 2001 e atravessa a década permeada por acontecimentos marcantes, até culminar com a captura do líder, em maio de 2011. 

As cenas iniciais em uma sala de tortura já antecipam a densidade e realismo das situações que virão ao longo da trama. A aparentemente sensível e insegura Maya que, a princípio, quase chora com a agonia do prisioneiro e parece chocar-se com os métodos utilizados pelos colegas de serviço, assume gradualmente tamanha obstinação diante dos fatos que se torna fascinante acompanhar a força de sua personalidade, a falta de temor e a inteligência com que conduz todo o trabalho que lhe cabe. Em meio a horas mal dormidas, má alimentação e parca vaidade, Maya empreende sua busca por Osama Bin Laden lançando mão de todos os métodos que julga válidos: depoimentos, torturas, gravações de áudio e som, escutas, perseguições, mapas, fotos e instinto. Em ambientes onde prevalece de forma massacrante a figura masculina, seja nas cúpulas burocráticas da política norte americana, na CIA ou no Comando Naval de Operações Especiais, Maya se impõe pela confiança de "100%".

Com movimentos amplos de câmera que viajam nos cenários naturais e direção de arte que recria com perfeição vilarejos e esconderijos no Oriente Médio, “A Hora mais escura” nos mergulha no realismo de confins islâmicos, para muitos, apenas parte de um imaginário distante. Da mesma forma, ao considerar aspectos da crença e sociedade orientais, o filme nos liga também àqueles personagens desconhecidos. Impossível desconsiderar a fidelidade de prisioneiros torturados ao ideal de guerra, o desespero das mulheres e crianças de Bin Laden ao perceberem a ameaça ao seu líder, ou a emoção de um dos membros da defesa americana ao visualizar corpos de seus descendentes islâmicos. 

Com uma narrativa bem amarrada que contempla com objetividade e fluidez a complexa rede de acontecimentos e personagens presentes ao longo de quase 1 década, somos levados aos bastidores de Bush, Obama e Osama. Ainda assim, muito além deles. As sequências de ação, que parecem trazer sons vindos de todos os lugares, fazem temer o já aguardado. Ataques terroristas, como os ocorridos na Turquia e em Londres, apesar de conhecidos, são apresentados de forma inesperada. Ainda, ao acompanharmos a chegada de supostos delatores da Al Qaeda a uma base militar americana, em meio a boas expectativas e olhares apreensivos, a sensação é de ameaça constante.

Finalmente, na tão aguardada sequência da captura do líder terrorista pelo Comando Naval, aspectos de uma estratégia minuciosamente técnica, mas ainda assim tensa e emocional. No avanço pelo refúgio do líder islâmico, não faltam disparos, bombas, portas, choros e escuridão. Em uma direção genial, que expõe Bin Laden da forma mais realista e sutil que poderia supor, temos o desfecho que abalou o mundo.

E assim como é incerto saber se a morte “daquele mais temido” mudará, de fato, o curso da história, torna-se incerto também entender o sentimento de Maya quando, finalmente, chora ao fazer cumprida sua missão. Talvez, a hora mais escura esteja apenas começando.

Por Rafaella Arruda 

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

As faces de Scarface



A análise dos filmes de gângsteres Scarface - A vergonha de uma nação e Scarface, com base no modelo da Jornada do Herói (Christopher Vogler), mostra que, em termos de estrutura narrativa, as obras guardam mais semelhanças do que diferenças entre si, o que confirma o processo de remake realizado pelo diretor Brian de Palma, em 1983. Por outro lado, as particularidades se referem especialmente ao uso de alguns recursos técnicos, perfil dos personagens e abordagem da criminalidade, fatores que podem ser explicados, em grande parte, pela própria diferença de duração e de contexto histórico dos filmes. Scarface - A vergonha de uma nação é de 1932 e possui cerca de 1h30. Já Scarface, do ano de 1983, tem duração aproximada de 2h50. Enquanto o primeiro trata da criminalidade durante a Lei Seca nos Estados Unidos da década de 1920, este destaca o tráfico de drogas nos anos de 1980 tendo como cenário o território estadunidense no período da Guerra Fria.

Em termos de estrutura narrativa, as fases da jornada do herói se apresentam de forma semelhante nas duas histórias, com conteúdos, ordenamento e transições similares. As exceções são a etapa do Encontro com o Mentor que, em 1932, diferentemente da versão de Palma, ocorre antes do Chamado à Aventura, e a própria fase do Chamado. Enquanto este momento se mostra bem marcado na versão de 1983, com o convite feito a Toni Montana para a arriscada negociação com os colombianos, no original essa etapa se mostra mais superficial, não específica. Isso, pois o convite feito por Lovo a Toni Camonte para negociar com os dissidentes da gangue sul acontece no momento em que o gângster já se encontra melhor inserido na aventura, praticamente no mundo especial.

No que diz respeito à duração das fases narrativas, os contrastes devem-se à própria diferença de duração dos filmes, como já citado. Nesse sentido, as diferenças implicam, naturalmente, no uso distinto do tempo para enfatizar determinadas etapas da história ou aprofundar-se na condução de certos personagens. Assim, por exemplo, o estágio referente ao Caminho de Volta desenvolve-se de forma mais duradoura e com mais implicações dramáticas na versão de 1983, assemelhando-se a uma nova fase de Testes, Aliados e Inimigos. Já na versão de Hawks, essa etapa se desenvolve de forma mais rápida, funcionando como uma breve transição entre a Recompensa e a Ressurreição. Ainda no que diz respeito aos personagens, Manny e Elvira de Scarface, por exemplo, detêm mais ações na narrativa e desenvolvem mais aspectos de sua personalidade do que Guido e Poppy na produção de Hawks.

Em termos de recursos técnicos, ambas as produções seguem uma narrativa clássica, com montagem predominantemente linear e câmera objetiva que tem o protagonista como foco na maior parte do tempo. Há o uso estratégico de primeiro plano e close para dar destaque às expressões e reações dos personagens em momentos de tensão e suspense. Enquanto no preto e branco de Hawks os elementos da morte, violência e criminalidade são especialmente representados por recursos de iluminação, com o jogo de luzes e sombras em ambientes internos e noturnos, na produção de 1983 são as cores fortes, como o preto e o vermelho, que adquirem um valor simbólico associado à temática dos gângsteres. O registro excessivo e realista do sangue em Scarface, por exemplo, dá lugar a uma apresentação menos gráfica das feridas em 1932, com planos mais afastados em situações violentas. Talvez de forma a suavizar a agressividade das cenas e atender aos padrões da censura cinematográfica. Ainda, se na obra original a trilha sonora musical é praticamente descartada, sendo substituída por efeitos sonoros de tiros, metralhadoras, movimentos de carros e assobios, no remake os recursos musicais são diversificados para representar as diferentes etapas narrativas e também a condição íntima dos personagens.

Com respeito aos gângsteres, personagens centrais da análise, a vida pregressa apresenta-se de forma semelhante em ambos os filmes. Em Scarface - A vergonha de uma nação um crime ocorrido nas primeiras cenas já oferece indícios de criminalidade referentes à vida do protagonista. Em Scarface a narração inicial do cenário político entre Estados Unidos e Cuba também cria expectativas em relação ao refugiado imediatamente apresentado. Ainda que Tony Camonte e Tony Montana rebatam as acusações iniciais que lhes são feitas, tão logo a história avance os indícios tornam-se fatos e são estabelecidos a personalidade e anseios que os protagonistas irão assumir ao longo de toda a jornada.

Os personagens detêm aspectos físicos similares. Estrangeiros, possuem estatura semelhante, têm pele clara, cabelo, olhos escuros e uma cicatriz na face esquerda. Ambos falam muito e de forma articulada. Em termos psicológicos, são irônicos, destemidos, ambiciosos, violentos, frios e determinados. Compreendem-se autossuficientes e capazes de vencer sem a ajuda de outros. Têm um relacionamento conflituoso com a família, principalmente pelo ciúme excessivo que sentem da irmã. No campo afetivo, também não enfrentam relações satisfatórias. No romance mantêm uniões instáveis e têm como amigo apenas um aliado que, ironicamente, irá sucumbir sob seu próprio jugo ao final. Como aspecto moral, ambos dão valor ao compromisso e à importância de se honrar a palavra, aspecto especialmente destacado em Tony Montana. E na mesma medida em que são traídos e confrontados, também buscam a vingança.

Apesar das semelhanças, alguns traços psicológicos, morais e de relacionamento definem importantes particularidades para cada anti-herói. Montana demonstra um nível de sensibilidade que é praticamente imperceptível no perfil de Camonte. Apesar de toda a truculência e destemor, Tony Montana revela um lado mais humano no trato com a família, apesar de não menos intenso, e demonstra preocupação com a vida de inocentes. Na maior parte das vezes mata em situações críticas, quando a ação mostra-se questão de defesa da honra ou da própria vida. Já Camonte, mais esquemático, demonstra uma frieza praticamente constante, com exceção do momento em que enfrenta a morte da irmã. Sarcástico ao extremo, o personagem parece se divertir diante dos riscos e, diferentemente de Montana, parece matar de forma antes despropositada, como impulsionado por prazer ou compulsão. Exemplo disso são os diversos assassinatos de membros da Zona Norte e o massacre de São Valentin. A morte dos adversários é vista pelo personagem como apenas mais uma etapa em sua busca pelo poder.



Ainda, a decadência do personagem em Scarface apresenta-se de forma mais explícita e gradual do ponto de vista físico, psicológico e moral. O vício nas bebidas e drogas, a obsessão pelo poder e riqueza, o ciúme pela irmã e os desentendimentos com Elvira e Manny, por exemplo, atribuem ao personagem uma demência gradativa que parece arrastá-lo irresistivelmente ao descontrole de si mesmo e à derrota diante do inimigo. Por outro lado, a narrativa de Hawks não destaca esses aspectos. Camonte alcança a etapa final mais íntegro físico e psicologicamente, demonstrando apenas ligeiro abalo pela morte de Guido. A sensação é de que o personagem enfrentou menos conflitos e foi afetado por estes de maneira mais superficial. Tony Montana revela-se assim um personagem mais complexo e paradoxal, o que o torna, consequentemente, mais interessante e imprevisível na narrativa e, finalmente, mais próximo à realidade do homem cotidiano.

A morte dos gângsteres, em ambos os casos, é a concretização do fracasso do anti-herói após a ascensão e o apogeu pela riqueza e prestígio. Tanto Tony Camonte quanto Tony Montana sucumbem diante do inimigo, quando são contemplados de maneira irônica pelos dizeres “O Mundo É Seu” em uma forma de coroamento trágico do mundo na criminalidade. Ao decorrer do enfrentamento com a polícia, a morte de Camonte guarda um tom moralizante que atende às exigências da censura na época do filme. O fim do criminoso pelas mãos das autoridades garante certa sensação de punição, ainda que tardia, e retorno ao equilíbrio, o que responde aos intertítulos introdutórios do filme com a indagação da sociedade pelo combate à marginalidade. 

Já a destruição de Montana assume aspectos contrários em termos de narrativa e moralidade. Do ponto de vista narrativo, a partir do momento em que Montana encara na etapa final um perigoso inimigo, com resistência e aparente equilíbrio de forças, a condução da fase da ressurreição gera mais imprevisibilidade e, assim, garante mais suspense. A longa sequência final na mansão de Montana, as vitórias e derrotas parciais do protagonista e o uso de montagem alternada são exemplos que contribuem para esse aspecto. Ainda, ao apresentar a derrota de um gângster pelas mãos de outro, a sensação ao final da narrativa é de impunidade, caos, negativismo. Em termos morais, a criminalidade não é combatida, apenas reforçada em um dos lados.

Apesar de todas essas variações entre os filmes, a causa primeira na morte dos gângsteres assemelha-se pela ironia. Ainda que marcados por uma vida de ilegalidade, tanto Tony Camonte quanto Tony Montana são vencidos por sombras que não representam os frutos diretos de tal criminalidade. Camonte é finalmente rendido pela polícia após sucumbir ao ciúme extremo pela irmã e assassinar o melhor amigo. Montana é fatalmente acuado pelos homens de Sosa após negar-se a matar inocentes, descontrolar-se pelo uso das drogas e fragilizar-se com o assassinato do melhor amigo. Assim, ciúme, violência, impulsividade, vício e fraqueza causam a queda dos anti-heróis. Resultado trágico de uma vida de excessos.

Em uma visão geral, a construção dos personagens em ambos os filmes confirma as características clássicas do gênero gângster. Os dois são personagens urbanos, estrangeiros nos Estados Unidos, com o desejo de mudarem de vida. Enfrentam as adversidades com a busca determinada pela riqueza e poder, estabelecem relações de poder e confiança, criam suas próprias leis e, após a recompensa conquistada no submundo, encontram um desfecho trágico. Também, Camonte e Montana mostram-se produtos do contexto social na medida em que se constroem em meio à inexistência de leis, corruptibilidade e ineficiência das autoridades públicas no combate à criminalidade. De forma conclusiva os personagens são, em essência, um reflexo do homem comum. Analisá-los é ampliar o entendimento do gângster em sua generalidade. Compreender o contexto em que se inserem é compreender a própria realidade capaz de resultar em tantos outros de mesmo perfil. 

Finalmente, como resultado da análise com base na Jornada do Herói, cabe destacar que tal modelo mostrou-se válido, ao atender generalidades da produção narrativa; prático, ao sugerir referências de análise; e eficiente, ao possibilitar uma compreensão ampla dos objetos propostos, tanto de forma isolada como comparativa. Da mesma forma, a consideração de conceitos sobre a linguagem cinematográfica e o personagem de ficção, a partir de outros autores, garantiu um exercício mais detalhado de percepção dos objetos, contribuindo para o resultado final.

A análise possibilitou não apenas compreender a construção do gângster em duas narrativas específicas, mas ampliou a visão geral do cinema enquanto linguagem ao demonstrar de forma sistemática sua capacidade de contar histórias, transmitir sentidos, construir e conduzir personagens. 

Por Rafaella Arruda
(Trecho adaptado a partir do trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de Jornalismo do Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH) - Dez/2012. "A construção do gângster na narrativa cinematográfica: as faces de Scarface a partir da Jornada do Herói")