segunda-feira, 2 de julho de 2012

Para Roma, com amor


Tendo como cenário a bela e iluminada capital italiana em tons pastéis, Para Roma, com amor, de Woody Allen, nos apresenta quatro diferentes estórias: A chegada dos pais da noiva à cidade para conhecer o futuro genro e sua família italiana; o desencontro de recém-casados após a esposa perder-se nas ruas em busca de um cabelereiro; a visita da aspirante à atriz que passa uns dias na casa da amiga e de seu namorado; e a transformação na vida de um pacato homem e sua família após ele ser reconhecido (ou seria conhecido?) como celebridade.

Intercaladas em uma montagem eficiente, o que dá a sensação de se passarem simultaneamente, as estórias jamais se cruzam. E os tempos tampouco se assemelham. O que há de comum entre os personagens, aparentemente tão corriqueiros, são as situações absurdas, ou no mínimo impensadas, que enfrentam e provocam. 

É assim quando o “pai da noiva” escuta o sogro da filha cantando ópera embaixo do chuveiro e decide lançá-lo no mercado da música, extasiado com a potência de sua voz. Ou quando a ingênua e recém-casada moça do interior se perde nas ruas de Roma, enquanto seu noivo, no quarto de hotel, recebe a visita inesperada de uma garota de programa que o confunde com um de seus clientes. Em outro canto da cidade, um jovem arquiteto se apaixona pela sempre descabelada e falante amiga da namorada, tendo nos ombros o fantasma palpiteiro do que seria no futuro. Por fim, um cidadão comum, trabalhador e pai de família, passa a ser tratado como celebridade e ganha as páginas da mídia dando depoimentos sobre a forma de se barbear e preparar a própria torrada.

“Para Roma, com amor” possui um ritmo agradável, com trilha sonora romântica e divertida. Os diálogos precisos e, quase sempre, hilários, compõem muitos dos personagens e nos revelam nuances de suas personalidades até então impensadas do ponto inicial da narrativa. É assim que conhecemos os anseios do aposentado, do tenor, do casal inocente, do homem maduro saudoso da juventude e do pai de família diante de uma fama insustentável.  

Brincando com a imprevisibilidade do amor e das loucuras do dia a dia, Woody Allen remete às mais diferentes situações e é na riqueza destas e dos personagens que também encontramos um pouco de nós. Assim, quase sem perceber. E de forma leve.  


Por Rafaella Arruda

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O artista



Assistir a O Artista é lidar com as belezas e amarguras que permeiam o mundo da 7ª arte. Dentro e fora da tela. Na vida encenada e na vida real. Um filme mudo e em preto branco, que trata do próprio cinema mudo em um espetáculo de metalinguagem, O Artista conta a estória de George Valentin, astro das telas de Hollywood durante o final da década de 20. Um galã, alegre e simpático, à la Gene Kelly, que conquista as plateias com suas caras e bocas ao representar heróis e conquistadores. De uma maneira bastante trivial, Valentin conhece a espontânea Peppy Miller, e o acaso os faz serem fotografados juntos, como um casal. Admirada com o astro e vislumbrada com as possibilidades de também tornar-se atriz, Peppy Miller aventura-se na carreira com o apoio de Valentin. A partir da chegada do cinema falado, os atores tomarão caminhos opostos. Ele irá persistir na arte que o consagrou, negando-se a aderir à nova linguagem. Ela mostrará todo seu talento nos filmes falados. O destino de suas carreiras, ao enfrentar queda e ascensão, será o destino de suas próprias vidas.
 
O Artista desperta diferentes emoções, desde o riso até o choro. As cenas iniciais entre Valentin e Miller são leves, divertidas, e até certo ponto, ingênuas. A sequência em que se reveem pelos pés através de um biombo, em um estúdio de filmagem, ou na qual Miller é surpreendida por Valentin em seu camarim, enquanto abraça o paletó do ator, revela o despertar de um sentimento que, embora pareça tímido, se mostrará forte e capaz de enfrentar as mais difíceis situações. 
Por outro lado, a decadência financeira e profissional de Valentin, representada sem delongas a partir de uma ascensão consolidada, é o retrato penoso da destruição de um sonho e facilmente nos faz sentir pena e nostalgia pelos dias de glória. As tentativas frustradas do ator em manter o sucesso só reforçam esse sentimento, como ao lançar-se como roteirista, produtor, diretor, editor e ator de um possível “novo filme mudo de sucesso” e receber um retorno ínfimo do público. Em contraste, a carreira cada vez mais gloriosa de Peppy Miller. De aspirante à atriz, ela torna-se o que Valentin foi. Em diferentes momentos, ao reencontrarem-se, essa diferença de status é representada pelo posicionamento dos atores e ângulos de filmagem. Na conversa nos degraus do estúdio, a atriz está acima, enquanto ele, abaixo. Na mesa do restaurante, enquanto Miller responde à imprensa, iluminada, Valentin recua-se ao canto mais escuro, frustrado. 
A resistência de George Valentin em aceitar a chegada do cinema falado é repleta de simbologias. Cheio de vida, mas também de medo e orgulho, o ator nega o novo. Em seus sonhos, representados com belos esquemas de edição, o som é o maior vilão. A voz lhe falta, enquanto a dos demais lhe oprime. Mas talvez seja na presença de um adorável cãozinho, principal companheiro de Valentin desde as cenas iniciais do filme, que esteja melhor representado o conflito entre o mudo e o falado, entre o sentimento e sua verbalização. São eles os que mais se entendem, sem que, para isso, precisem trocar uma só palavra. O mesmo acontecendo em diferente escala, entre Valentin e seu chofer Clifton, em um relacionamento repleto de verdade e lealdade, e de poucas palavras. 
Transportados para a era do cinema mudo a partir de uma bela trilha sonora, condizente com as sensações trazidas pelo filme, e personagens oportunamente caricatos e sensíveis, O Artista nos enriquece ainda com referências claras a alguns clássicos da 7ª arte, como Cidadão Kane e Cantando na Chuva. Ao encerrar-se com a chegada dos musicais, o filme parece completar um ciclo e retomar a grandiosidade dos momentos de Valentin. Um artista não necessariamente rendido à fala, mas ao amor da mulher que soube abrir seus olhos para a capacidade de viver sem esconder o próprio talento. 
Por Rafaella Arruda

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A Separação



O drama iraniano A Separação (2011) é um belo, tenso e emocionante retrato da vida comum. Em meio a um dilema afetivo, mais marcado pelo conflito de interesses do que pela falta de sentimentos, o casal Simin e Nader resolve se separar. Ela pretende mudar-se do Irã e começar uma nova vida ao lado do marido e da filha Termeh, de 11 anos. Ele, dedicado ao pai que sofre de Alzheimer, recusa-se a abandoná-lo para acompanhar a esposa, assim como se nega a aceitar a partida da filha. O impasse, que vê na separação a única saída, torna-se o ponto de partida para uma nova realidade. Longe da esposa e tendo que se dedicar ao pai, de 80 anos, e aos cuidados de sua filha, Nader contrata Razieh, uma mulher a quem caberá os serviços domésticos e os cuidados do idoso durante sua ausência. Uma árdua tarefa que levará a batalhadora e dedicada mulher a enfrentar seus limites... Após um incidente no trabalho, Razieh, Nader e suas respectivas famílias enfrentarão novos impasses, colocando em jogo questões envolvendo dignidade, família e religião.

O uso frequente de câmera subjetiva e planos fechados, que quase não nos permite perceber os ambientes em sua totalidade, enquanto enfatiza a expressão dos atores, cria uma sensação de proximidade do espectador com os personagens e suas aflições. A captura constante de particularidades dos cenários domésticos, como porta, janelas e escadas, também nos aproxima da vida daqueles que são representados, criando uma intimidade entre nós e o ambiente, como se também fizemos parte daquela rotina. Nas situações de angústia e tensão, por exemplo, somos também acuados, como durante os tantos diálogos intensos, praticamente sem pausas. Mas A Separação é, antes de tudo, um filme marcado pela sensibilidade, pela naturalidade das emoções tão bem transmitidas pelos atores.

Os personagens, cada um com seu destacado valor (incrível perceber como cada uma das estórias representadas assume uma importância para a narrativa), são fortes, e ao mesmo tempo frágeis. Como Nader, homem honesto, dedicado e atencioso que em momento decisivo se encoleriza, acusa, agride... E Razieh, zelosa, decente, compreensiva e temente a seu Deus, mas que se precipita ao acusar sem certezas. Indivíduos que se sacrificam e se perdem em suas fragilidades. Do outro lado, as doces crianças Termeh e Somayeh, que não menos se sacrificam, e que, em sua pureza e inocência, enfrentam as dificuldades da vida sem escudos. Perceber o choro da menina Termeh, ao surpreender a aparente morte do avô, ou da pequena Somayeh, no desespero de presenciar o sofrimento da mãe, são situações que emocionam tanto quanto o choro de Nader na luta para cuidar do pai ou de Razieh, que implora perdão para conseguir a liberdade do marido. Situações magistralmente conduzidas e que exalam verdade.

Mas o importante é que a produção iraniana A Separação não é um retrato pessimista da vida. É sim, apenas, um retrato da realidade, com todos seus dilemas. Talvez tão perfeitamente transpostos mesmo para nossa tão distinta realidade Ocidental. Um mundo de homens comuns permeado pelo conflito de valores como família, religião, educação e respeito próprio. Onde se relacionam pais e filhos, senhores e empregados, crianças e idosos.

No filme, a sensação é de que, apesar das dificuldades, no fim, sobressaem os bons valores. A moral, e não a decadência. E como forma de trazer esse questionamento a nós mesmos, temos a estratégica cena final em que se retoma a situação da “separação”. Seríamos capazes, estando no lugar do personagem, de decidir pelo melhor caminho? Com quem ou pelo quê ficaríamos? É com essa pergunta que abandonamos a tela... Procurando respostas. Pensando sobre as dificuldades do mundo, mas principalmente, sobre nossa postura diante delas.

Por Rafaella Arruda

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Cabo do Medo



Na atual cidade de New Essex, Estados Unidos, um homem recém-saído da prisão retorna à liberdade com o desejo único de vingança. Condenado a 14 anos após estuprar uma jovem, Max Cady (Robert De Niro) parte em busca de Sam Bowden (Nick Nolte), advogado que havia assumido sua defesa no caso e logo após abandonado ao tomar conhecimento do grave estado da vítima. Entregue à defensoria pública, Max é considerado culpado. Na cadeia, descobre que informações acerca da vida promíscua da vítima, capazes de reduzir sua pena, haviam sido omitidas pelo ex-advogado. Agora, nas ruas, Max Cady quer se vingar, e para isso não medirá conseqüências. Sam, a esposa Leigh (Jessica Lange) e a filha adolescente Danny (Juliette Lewis) serão os alvos deste violento psicopata, em uma trama surpreendente sobre traição, vingança e assassinatos.

A estrutura narrativa linear de Cabo do Medo revela de forma gradual o perfil dos personagens. Inicialmente, em fragmentos breves, apresenta os protagonistas que constituem um único núcleo narrativo: Max Cady e a família de Sam Bowden. A partir da primeira virada violenta e dramática da estória, com o estupro da amante de Sam, Lori Davis (Illeana Douglas), as ameaças de Max tornam-se fatos, o que garante a expectativa e suspense acerca dos próximos acontecimentos. O vilão revela sua perversidade e deixa claro do que realmente é capaz.

Irônico e destemido, Max não teme as leis e a possibilidade de retornar à prisão; violento, usa de toda a força física para agredir e matar; cruel, lança mão de tortura psicológica ao fazer ameaças constantes e sugerir a suas vítimas as mais constrangedoras situações. O corpo forte e coberto por tatuagens constitui para Max uma arma letal e resulta da preparação durante os anos que esteve na cadeia. Fanático religioso, recita de cor trechos da Bíblia em momentos cruciais da trama, como durante a agressão encomendada por Sam ou no embate final na casa flutuante. A forte ligação com a religião e a visão estranha que possui de Deus, inclusive, contribuem para tornar Max um personagem interessante e curioso não apenas do ponto de vista físico, mas também moral e psicológico. Em diversas situações, Max surpreende em atitudes não esperadas pelos personagens nem pelo espectador, como ao se esconder sob o carro na fuga para à casa flutuante ou ao se disfarçar com as roupas da empregada da família, após assassiná-la. Também ao aproximar-se de Lori e Danny, sem revelar quem realmente é, Max gera grande expectativa sobre como e quando se manifestará.

A sequência entre Max e Danny na escola é um destes exemplos. Ao se encontrarem, após uma estratégia muito bem planejada pelo vilão, Danny não tem consciência da ameaça a que está submetida, o que garante a tensão da conversa do início ao fim: sabemos do mal que Max quer fazer à jovem, mas não sabemos ainda de que maneira; sabemos do que ele é capaz, enquanto a jovem acredita apenas estar conversando com um professor. Com diálogos inteligentes e repletos de subjetividades, a inocência de Danny, brilhantemente representada por Juliette Lewis, se contrapõe à malícia de Max em uma sequência bastante envolvente. Ela figura o estereótipo de uma adolescente em fase de transição e questionamentos, e seus trejeitos físicos, andar e olhares nos fazem percebê-la como uma jovem imatura e inexperiente, presa fácil de uma mente perversa como a de Max Cady

Sam Bowden, apresentado como um frio advogado e pai de família, também revela ao longo da trama mais de seu caráter. Descobrimos que ele trai a esposa e tem problemas de relacionamento com a filha adolescente. Todos os três com temperamentos fortes e propensos ao conflito de interesses. Enquanto alega sensatez por ter abandonado a defesa de Max, 14 anos antes, lança mão de métodos ilegais para capturá-lo ao pagar capangas para agredi-lo. Assim, à medida que as ameaças de Max aumentam e Sam sente-se acuado e perturbado, percebemos no advogado uma grande determinação para proteger sua família, podendo, semelhante ao algoz, levar sua atitude até às últimas consequências. Da mesma maneira, ansiamos pelas investidas de Sam e pela capacidade que terá para vencer o inimigo.

Nos aspectos técnicos de direção, o uso de violência extrema, mostrada com grande realismo (cena do estupro, agressão a Max Cady e luta na casa flutuante), a abordagem de conflitos familiares, a tensão psicológica íntima vivida pelos personagens e a submersão destes em uma atmosfera de traição e assassinatos são elementos que confirmam o estilo de Martin Scorsese, tome-se como referência obras de destaque do cineasta como Taxi Driver, Touro Indomável e Os Bons Companheiros. Por tratar-se de um suspense, Cabo do Medo prioriza a surpresa, a tensão e a expectativa, como já citado, e tem na trilha sonora e na fotografia elementos essenciais de reforço do gênero.

A trilha, de responsabilidade do músico Bernard Herrmann, que assinou inúmeras produções do mestre do suspense, Alfred Hitchcock, tem notas bem marcadas nos momentos mais tensos, ao antecipar surpresas, conduzir fugas e perseguições, e ao embalar as aparições de Max Cady. Em relação à fotografia, o uso recorrente de primeiro e primeiríssimo plano (ou close-up), câmeras estáticas e movimentos de zoom in captam as expressões dos personagens em momentos de maior tensão e, portanto, contribuem para o suspense ao enquadrá-los de forma mais próxima, possibilitando ao espectador compartilhar mais intensamente de seus medos e aflições. Exemplos são os enquadramentos longos em close-up de Max Cady ao ser levado à delegacia, acusado de envenenar o cão da família Bowden, e o movimento de zoom-in sobre Sam ao ser informado da acusação por agressão.

A iluminação do filme é predominantemente escura, com uso de sombras, reflexos na água e jogo de luzes que remetem a sonhos e alucinações. Essa forma valoriza o clima sombrio da trama ao encobrir elementos e personagens e, portanto, gerar expectativa sobre o que será revelado, como na sequência em que a família Bowden esconde-se na própria casa, às escuras, para aguardar a chegada de Max. Além disso, também para reafirmar o estilo de Scorsese, Cabo do Medo faz uso recorrente de cores fortes, com ênfase no vermelho, seja no sangue intenso das cenas de violência ou no próprio figurino de Max Cady, inclusive caracterizando o seu próprio carro. Neste sentido, o vermelho simboliza o pecado e a maldade de Max Cady, aquele pelo qual se tem mais temor.

Cabo do Medo representa, assim, mais um suspense hollywoodiano de qualidade. Com uma trama envolvente, personagens fortes e um clima sombrio e ameaçador, é mais um exemplo da condução fascinante de Scorsese em parceria com o brilhante Robert De Niro.


Por Rafaella Arruda